quarta-feira, 13 de maio de 2015




Quando termina um Sonho e Começa a Realidade?
mulher pensando


Uma ação não depende da vontade, mas do "querer" em tornar concreta essa vontade...
Não acontecera em apenas um dia, ou do dia pra noite, como costumava dizer. A coisa ocorrera de forma gradual, progressiva, como uma sementinha que depois de fertilizada, sem saber por que, querendo ou não, brota da terra e se transforma numa plantinha.

Aquele não era um dia igual aos outros, tudo parecia diferente. A começar pela falta de coragem em levantar da cama. Não que isso fosse uma coisa desagradável, o ficar na cama e dormir mais um pouco, mas comparado com os dias normais, motivado para trabalhar como sempre fora, isso era uma novidade. Tão nova que se pôs a pensar. Aliás, isso também era outra novidade, o fato de parar para pensar.

E nessa leva de pensamentos, incomum para o seu perfil sempre inquieto e ansioso, começou a fazer uma retrospectiva de sua vida. Ainda foi ao espelho, olhou de perto para ver se era ele mesmo, depois retornou à cama. “Talvez precise de um pouco mais de sono, deve ser isso...”, sussurrou.

Mas não sem antes constatar uma coisa estranha. Tudo estava silencioso demais para ser normal. Apurou a audição em busca de algum barulhinho, por menor que fosse, e nada, nadinha. Definitivamente, algo estava errado, ou diferente com aquele dia. Morava em meio a uma rua barulhenta, vizinhança barulhenta, residências coladas umas nas outras, numa casa de paredes tão finas quanto papelão grosso, de onde era possível escutar até os cochichos dos vizinhos, daí o espanto.

No entanto, estes detalhes ficariam para depois, uma vez que seu cérebro já começara a fazer um inventário de todo o seu viver.

Nascia o indivíduo, sem depender da sua vontade, depois, iria crescer, mas não sem antes aprender um montão de coisas, ideias e pensamentos, as coisas que já existiam no mundo, antes de sua existência. Mas, se todas as coisas que aprendera, ideias, tradições, crenças, superstições, tudo isso já existia no mundo antes do seu nascimento, então, o que ele era, senão uma espécie de máquina de repetir, sem pensar, todo esse conhecimento já existente?

No que ele pensava senão naquilo que todos já pensavam? E desde cedo aprendera, através de livros, ou de pessoas, o que deveria fazer, no que deveria acreditar, o que deveria desejar, qual era a melhor escolha, e tudo o mais, através do processo da imitação.

Desse modo, existia algo de autêntico nele, quer dizer, que fosse só seu, que não tivesse sido dito, escutado, repetido de mais ninguém? Existia nele algo original, que não tivesse saído das páginas dos livros, da tradição, dos gabaritos que todos seguiam como se fossem robôs a executar uma tarefa cega?

Do que tinha medo? Será que seus medos eram só seus, ou mais alguém tinha um medo em comum? E suas angústias pessoais, e sentimentos, e seus objetivos de vida, e os motivos pelos quais ficava triste, afinal, existia alguma coisa que não fosse também coisa comum de todos? Percebeu que não, uma vez que todos, assim como ele, aprenderam a ser “gente” seguindo uma mesma cartilha.

Então escutou um barulho, mínimo, tão discreto que duvidou que o fosse. Esperou quieto que se repetisse para ter certeza de que ouvira. Não se repetiu. Ficou na dúvida se ouvira ou não. Mas aquilo fora suficiente para trazê-lo de volta à realidade, que era o silêncio absoluto que reinava naquele dia. Seu corpo parecia mais pesado que de costume, parecia imantado pela cama, daí a dificuldade em levantar-se, e analisar o que estava acontecendo, se é que isso era possível.

Resolveu que contaria até três. No três, levantaria de qualquer maneira. Abriu a janela do seu quarto e constatou, espantado, que ainda era noite, embora seu relógio de cabeceira lhe dissesse o contrário. “Será um eclipse total do sol, ou uma espécie de fim do mundo?”, especulou em busca de uma explicação, um ponto de partida para compreender o fenômeno. Só nesse momento lhe ocorreu de ir aos demais cômodos da casa em busca dos seus parentes. Afinal de contas, não morava ali sozinho.

E ao sair do quarto percebeu que não estava em sua casa. Trancou a porta e retornou à cama. “A coisa é pior do que eu pensava...”, comentou consigo mesmo, enquanto tentava, mentalmente, encontrar uma pista que o levasse a compreender o que estava acontecendo. E se gritasse bem alto? Pelo menos, outros poderiam ouvir e responder com alguma espécie de barulho, o que já seria um indício de normalidade. Mas, sem saber onde estava, podia ser imprudente. E se tivesse sido sequestrado e aquilo fosse um cativeiro?

Pegou seu celular e percorreu sua lista de contatos. Faria uma ligação para alguém, falaria alguma coisa, usaria uma desculpa qualquer como motivo, o importante era ouvir a voz de outra pessoa. Tudo fora de área ou desligado. Pronto, aquilo só podia ser um sonho, um sonho não, um pesadelo. E se fosse, de cara, já seria a coisa mais estranha que jamais lhe acontecera.

Como poderia ser um sonho se ele estava desperto, vigilante, consciente, ali, olhando para si mesmo no espelho, beliscando-se e sentindo na pele, repetindo seu nome e escutando sua própria voz? Viu então que estava vestido com uma roupa nova, de sapatos, inclusive. Será que, sem o saber, havia morrido?

Não tinha mais jeito, aquilo já era demais, resolveu sair daquele quarto, que não era o seu, e explorar o lugar onde se encontrava.

Viu-se diante de um corredor com várias portas dos dois lados. Um hotel talvez, ele pensou, embora não tivesse a mais vaga lembrança de ter, no dia anterior, se hospedado em qualquer lugar. Só então percebeu que não lembrava do dia anterior, nem da semana anterior, apenas de quem era, do seu nome, do nome dos seus pais, embora não lembrasse de seus rostos.

“Será que sou viciado em drogas e isso é a consequência, uma espécie de efeito colateral?”, pensou desesperado. Mas não havia indícios de nada disso, e ainda por cima, que lembrasse, não tinha vício algum, por isso descartou a ideia imediatamente.
 

Bateu na primeira porta no corredor. Valia a pena o vexame de alguém aparecer perguntando o que queria, pois o importante era ver gente. Nada, silêncio absoluto do outro lado. Tornou a bater, repetidas vezes, com mais força. Repetiu o mesmo em todas as portas que existiam naquele corredor, e nada.

Uma das portas se abriu ao ser chutada na aflição. Entrou vagarosamente. Primeiro espiou lá dentro, ainda da porta, depois percorreu o recinto. Vazio, cama arrumada, móveis nos lugares, limpos, sem vestígios de poeira. Armários sem roupas, geladeira vazia, sem retratos nas paredes, nenhuma presença humana.

Ligou a TV; fora do ar. Desceu as escadas, chegou à porta da frente daquela estranha hospedaria. Abriu e, a exemplo do que já vira de sua janela, tudo escuro. Luzes dos postes amareladas, quase sem cor, pouco brilho, piscando, como se fossem apagar a qualquer momento.

Deu um grito, um imenso e duradouro grito, não tinha mais nada a perder. Nesse momento pareceu cair dentro de um bueiro que não vira, na rua por onde caminhava. Caiu sentado, em sua cama, desorientado, sem saber de que lado estava a porta do quarto, sem noção de tempo.

Sua mãe apareceu à porta, assustada com o grito que dera. “O que houve, não me diga que andou sonhando outra vez que era gente?”, foi logo perguntando.

“Acho que sim. Foi isso que aconteceu...”, murmurou já recuperado da estranha experiência. Mas, esquisito mesmo, era, para ele, uma Lagartixa, sonhar repetidas vezes que, de repente, se transformara em gente.

Nenhum comentário:

MESES DO ANO